Rafael Marantes
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Canguru
13 min.
Horror
— Ali, estão vendo? — falou Miguel enquanto dirigia em direção ao sol poente.
— Onde? Onde? — perguntou a filha mais nova, Cátia, que estava no banco de trás.
— Logo ali — respondeu a esposa.
Miguel virou o carro noventa graus e a família toda pode ver a silhueta de uma turba de cangurus-vermelhos pastando e bebendo água no riacho próximo. Alguns dos animais ergueram suas pequenas cabeças ao ouvirem o motor do veículo, mas logo voltaram a seus afazeres.
— Eles são tão fofos! — disse Clara, a primogênita, espiando-os com os binóculos.
— São mesmo — concordou a mãe que tentava fazer fotos com seu celular.
Os Castro ficaram uns bons minutos admirando a vida selvagem. Aquele era o primeiro passeio de suas férias de uma semana da Austrália. Haviam locado uma moderna casa no campo, perto deste área de cangurus e afastada da cidade. Com o grande SUV pretendiam ganhar tempo e liberdade para ir e vir.
— Será que eles são bobões como gatos? — questionou Miguel, começando a torcer os lábios em seu característico sorriso implicante.
— Não, Miguel — disse a mulher — Por favor, deixa os animais em paz.
— Ah, Janete, é só uma brincadeira — ele riu — Que mal vai fazer? É um teste de bobice!
— O que você vai fazer?
— Olha lá.
Miguel tirou do bolso um chaveiro com um laser e começou a apontar o ponto vermelho para a grama por entre os cangurus. A grande maioria deles não deu bola. Um ou outro olhou curioso. Mas foi um macho que realmente deu atenção a luz. Ele bufou e deu um pequeno pulo em direção a seu alvo. Rindo, Miguel moveu o laser. O grande canguru se moveu e tentou pegar com sua pata esquerda.
— Para com isso, Miguel — pediu Janete — Está irritando o pobre do bicho.
— Não, ele está se divertindo!
— Acho que não está feliz, pai — colocou Clara.
— Vocês são muito sem graça — ele ria.
O macho alfa pulava de um lado ao outro por entre seu bando tentando capturar a luz vermelha. Então, ele perdeu de vista seu inimigo. Movendo a cabeça para os lados em estado de alerta, o canguru foi identificar o brilho rubro vindo do carro. Com um violento impulso, o líder do bando se dirigiu em direção ao veículo.
— Ele está vindo para cá, Miguel! Vamos embora!
— Liga o carro, pai!
Enquanto esposa e filha ais velha gritavam e a mais nova começava a chorar, Miguel deu partida no SUV e acelerou o máximo que pode. O canguru vinha correndo atrás deles.
— Mas aquilo é um animal ou uma máquina? — perguntou Miguel, que via o velocímetro passando dos 60km/h e o canguru ainda ganhando terreno sobre eles.
Eles fizeram o caminho de volta em silêncio. A pequena buscava consolo no colo da irmã mais velha. Janete estava com a cara fechada e olhando para a paisagem que passava rápida ao seu lado. Miguel, que havia tentando distensionar o clima logo que despistaram o canguru, havia até mesmo desistido de tentar manter o sorrisinho em seu rosto.
O anoitecer trouxe pesadas nuvens trovejantes. Os Castro jantaram em um clima que foi ficando mais leve. Agora que o susto havia passado e estavam em plena segurança, todos condenaram Miguel, mas estavam dispostos a perdoá-lo.
Após a refeição, quando todas as moças foram para os quartos no andar de cima, Miguel ficou sozinho na espaçosa sala. Havia uma lareira ali para os dias frios, com seu kit de acessórios de limpeza de ferro escuro bem arrumado do outro lado. De costas para ela e num desnível que ficava dois degraus abaixo, um sofá largo, alto e profundo, feito com um macio couro castanho, e, em frente a ele, uma grande televisão sobre um estiloso rack assimétrico ladeado por janelões. O chão frio era escuro e coberto com aconchegantes tapetes fofos. A transição para a cozinha se dava na diferença da cor do piso, pois não existiam paredes separado os ambientes. Lá, imitando mármores, peças de porcelanato cobriam o chão e subiam pelas paredes, entrando em choque com os armários e eletrodomésticos pretos.
Logo ao lado da lareira ficava a escada para os quartos. Era um estilo bem moderno, em que cada degrau era independente. De um lado, uma vidraça que ocupava toda a parede e permitia ver o campo ao redor, com sua vegetação se dobrando ao vento a cada momento mais forte. Do outro, o guarda corpo também de vidro. A proteção ia até o fim e seguia fazendo seu trabalho decorativo e protetor no mezanino onde ficam as portas para os dois quartos e para o banheiro.
Miguel teve que se levantar para desligar a televisão, pois não achava o controle remoto no confortabilíssimo sofá. Enquanto procurava pelo botão na parte de trás do aparelho, fez pressão com os joelhos nas portas do rack que, tendo fecho de pulador magnético, se abriram. Ele conseguiu apagar a TV e foi de abaixar para fechar o móvel, quando viu que havia algo dentro dele e riu.
Janete estava na cama, pronta para dormir com sua touca de cetim e camisola de algodão. Enquanto postava as fotos do dia no Instagram, ouviu Miguel subindo as escadas.
— Vem para cama logo, amor — disse ela quando o ouviu abrindo a porta.
— Querida, olha isso!
Ela ergueu os olhos. Parado no batente estava Miguel usando a mais ridícula fantasia de canguru já vista. Era uma tiara com as orelhas e focinho no nariz que se prendia com um elástico ao redor da cabeça. Tinha uma comprida e pesada cauda amarrada na cintura. A figura ficava completa com um calção de boxe com imagens de cangurús usando luvas.
— Que coisa é esta? — ela riu.
— Não é incrível?! — ele ria mais ainda — Não quer ter uma verdadeira experiência australiana?
— Ai, Miguel! De onde tirou essa roupa horrível?
— Achei no armário de baixo da TV. Acho que usaram para gravar um pornô amador aqui e deixaram para trás.
— Ou a corretora que nos alugou a casa deixa ali justamente para gerar pornô amador de seus clientes com suas câmeras escondidas.
— E, ai? Devemos dar material para ela? — perguntou Miguel, se aproximando.
— Até podemos, mas sem essa coisa horrível! Vai colocar isso no lugar antes que fique com alguma alergia.
— Ah, eu posso só deixar aqui do lado e...
— Não, Miguel. Não quero essa coisa horrível aqui. Além do mais, está com um cheiro esquisito.
— É, esta mesmo. Acha que a corretora não manda para lavanderia depois de cada casal que usa?
— Que nojo, Miguel! Vai, some com isso daqui. E me traz um copo de leite aquecido quando voltar.
— Vou te dar um leite aquecido — respondeu ele, apertando seus testículos.
Janete riu enquanto o marido saía. O rabo falso foi batucando em cada degrau da descida. Ela retornou as redes sociais. Os trovões estouravam cada vez mais altos e frequentes. Miguel estava colocando o leite no fogo quando sentiu uma brisa fria vinda por suas costas. Ele se virou e viu que a grande porta de entrada da casa estava aberta.
— O vento está mais forte do que parece — murmurou, indo fechar a entrada. Passou a chave, coisa que não havia feito antes, para previnir que se abrisse novamente. O vento estava assoviando forte para dentro já.
Com toda calma, Miguel tirou a fantasia de canguru e voltou para a cozinha. Estava quase no ponto de tirar a bebida do calor quando ouviu um terrível grito vindo do andar de cima.
Janete riu enquanto o marido saía. O rabo falso foi batucando em cada degrau da descida. Ela retornou as redes sociais. Os trovões estouravam cada vez mais altos e frequentes. Ela estava distraída com as atualizações. Arrepiou-se quando um vento gelado se insinuou para dentro da casa. E ouviu quando os passos desajeitados subiram a escada novamente.
— Ele não tirou aquele rabo — disse para si mesma e, quando ouviu a aproximação, tirou os olhos da tela brilhante do celular — Miguel, não te disse para tirar essa coisa? Sério, está fedendo muito.
A figura de orelhas pontudas ficou em silêncio no portal. As pupilas dilatadas de Janete só permitiam que ela visse a sombra dele.
— Miguel, eu estou falando sério — ele respondeu a ela com um rosnado asmático — Sério, isso? O que houve, o rabo ficou preso?
Ele deu um passo a frente. Um passo não, um pulo. E Janete percebeu que não se trava se deu marido, mas sim de um grande canguru-vermelho. O animal soltou seu rosnado mais uma vez e pulou na direção da cama com as compridas garras escuras prontas para atacar. Ela deu um grito tão alto que nem sabia que era capaz.
Miguel subiu as escadas correndo. Passou como um furacão em frente ao quarta das filhas, onde elas estavam indo abrir a porta para ver o que havia acontecido. Chegou a tempo a de ver o sangrento último suspiro de Janete. Seu corpo jazia no chão, retalhado por afiadas unhas. O grande canguru virou seus olhos assassinos para o restante da família, mas antes que pudesse chegar a eles, Miguel fechou a porta.
— Vão para o carro! — gritou para as filhas que estavam congeladas de choque — Agora!
O animal de jogava contra a porta. A madeira se rachou com facilidade ao receber o impacto de maciços noventa kilos.
Miguel correu logo atrás das filhas. Clara havia pegado Cátia no colo e estava no pé da escada quando a porta cedeu e o canguru se jogou desembestado, coberto de farpas, no estreito mezanino, batendo no guarda corpo de vidro, que se quebrou com o impacto. Ele caiu no andar de baixo em meio a uma chuva de cacos de vidro.
As meninas pararam junto a porta aberta ao ver a cena. O pai terminou de descer os últimos degraus, pegou um atiçador de fogo e se aproximou lentamente da fera. A ponta aguda da ferramenta estava poucos centímetros de distância do canguru, quando ele bufou e começou a se levantar.
Miguel deu um pulo e se virou para ir em direção a saída que as filhas haviam deixado aberta para ele. Antes que pudesse dar três passos, foi atingido na altas dos ombros por dois pés fortes e caiu no chão. Virou-se a tempo de ver o marsupial se posicionar para lhe rasgar a carne, mas conseguiu, antes, bater na lateral do animal com seu atiçador.
O canguru rugiu - ou fez um som parecido com um rugido - e avançou sobre um Miguel que ainda tentava se erguer. O bicho de movia com violência e surpreendente rapidez para seu tamanho. Jogou-se de frente contra seu inimigo, dando uma dura barrigada no homem, que tentou revidar com outra pancada do atiçador. Acertou seu alvo, mas não com tanta força quanto o esperado. E o canguru, que já havia recebido golpe similar antes, soube reagir cravando suas garras no antebraço do humano e puxando, de modo que os músculos se tornaram farrapos pendurados.
Instintivamente, Miguel virou-se e dobrou-se sobre o ferimento. Erro mortal. Ao fazer isso, espichou o pescoço, deixando-o a vista e vulnerável. Com um potente golpe se sua pata esquerda, a fera corou-lhe a artéria e arranhou seu esôfago. A última coisa que Miguel viu foi a pequena cabeça de orelhas compridas do macho alfa do bando que havia provocado mais cedo bufando em seu rosto.
— O quê vamos fazer? O quê vamos fazer? — chorava Cátia dentro do carro.
— Eu não sei! — respondeu Clara, que só não chorava por estar em demasiado choque. Podia ver o pai brigando com o animal dentro de casa — Precisamos pedir ajuda, mas deixei meu telefone lá dentro!
— Temos que ajudar o pai e a mãe!
— Temos que ir a cidade. Vai para o banco de trás e coloca o cinto. Vou tentar dirigir.
A pequena obedeceu. Clara achava que a irmã não havia visto muito da cobertura de sangue que havia sido colocada nas paredes do quarto principal. Ela também duvidava que algum dia conseguisse tirar da cabeça a imagem do corpo de sua mãe dilacerado no chão.
Clara deu partida no carro e, desajeitadamente, começou a dirigir. Não sabia bem o que fazer ou como, mas como boa adolescente que era, assumiu o voltante com confiança. Até porque a outra opção era tentar correr no escuro e na chuva que começava a cair pesada.
Ela achava que havia entendido como fazer para andar, quando um solavanco a fez perder o controle. O SUV chocou-se contra uma árvore e os air-bags estouraram. Clara desceu do veículo atordoada quando levou uma pancada. O canguru maníaco viera atrás delas e a agredia com o musculoso rabo. Clara voou pela estrada de terra. Esta se erguendo quando foi atingida pelos pés do animal. Podia jurar que havia quebrado alguns ossos e que aquele seria seu fim. O marsupial veio com relativa calma até ela, preparando-se para o golpe final, quando foi distraído. Um ponto de luz vermelha surgiu no chão, ao lado de Clara.
O canguru-vermelho urrou. Desta vez, ao invés de seguir o ponto, virou-se para o outro lado. Seus olhos escuros encararam com fúria ensandecida a pequena Cátia ainda dentro do veículo com o chaveiro laser tentando distraí-lo para salvar a irmã.
Ele bufou a partiu a toda velocidade em direção ao veículo. Bateu na lataria com todas suas forças. Cátia se encolhia no lado oposto, gritando. O animal quebrou o vidro e espichava suas garras e tronco para dentro, mas não alcançava a menina.
Clara, capenga, conseguiu se erguer. Vendo a irmã indefesa, mas sem ter armas correu na chuva na direção do canguru, agarrando-o por trás. Irado, o bicho pulou e se sacudiu, jogando sua atacante de novo na terra. Ele voltou-se para Clara e a rasgou como se fosse feita de papel. Então, virou sua pequena cabeça de volta para o carro.
Cátia, aproveitando a distração criada por Clara, tentou fugir a pé. Ela corria o mais rápido que suas pernas de oito anos eram capazes. Lágrimas se misturavam com a chuva em seu rosto. Estava tão atordoada que não ouviu o chapinhar dos pulos atrás de si. Mal sentiu o golpe na cabeça que a fez cair desacordada. E, com um último pulo, o canguru-vermelho soltou todos seu peso sobre as costas frágeis da menina. Seus grandes pés quebraram as costelas e se afundaram nas vísceras.
As grandes orelhas do canguru-vermelho captaram ao longe, camuflados pela chuva e pelos trovões, o som de uma sirene. Ele, obviamente, não tinha como saber, mas o SUV havia enviado um sinal de socorro imediato ao sofrer a batida. Uma ambulância vinha correndo pela precária estrada para prestar socorro. O marsupial se balançou por inteiro e pulou para longe, voltando para seu bando próximo ao rio.
A manhã seguinte nasceu fresca e ensolarada. Algumas poucas gotas nas folhas e pequenas poças de lama era as únicas testemunhas da noite chuvosa. Barbra dirigia com calma em direção a casa de campo que havia locado para a família de brasileiros pouco tempo antes. Recebera uma chamada da polícia de “problemas no local” e dizendo que “seria bom que ela estivesse por lá”.
A barreira começava na altura do SUV batido contra a árvore que, heroicamente, havia resistido com poucos arranhões em sua casca. Uma ambulância estava ali, uma viatura e dois sacos de cadáveres. O policial mais perto veio cumprimentar a corretora.
— Bom dia, Barbra — disse ele abrindo a porta do carro e ajudando-a a descer.
— O que houve aqui? — perguntou a mulher indo em direção as vítimas ensacadas.
— Veja você mesma — ele revelou o corpo dilacerado de Clara.
— Meu deus! — arfou a mulher.
— Tem mais o da pequena ali. E o casal na casa.
— Que coisa mais horrível! Isto é...
— Ataque de canguru — respondeu o guarda, já sabendo o que seria indagado — Outra vez o canguru ataca alguém nesta sua casa, Barbra. Só que dessa vez foi fatal.
— Heathcliff, o que foi que você fez desta vez... — murmurou ela.
Quilômetros de distância da bagunça de viaturas e sirenes, Heathcliff se aproxima do local onde sua turba dormia. Ele achou seu canto e se deitou, lembrando as patas para se limpar. O sangue humano, viscoso e férrico, dançou na sua língua. Aquilo tinha um sabor muito melhor do que ele esperava. Era muito superior a qualquer gramínea que já tivesse provado. Talvez devesse ir atrás de mais. Mas não agora. Por ora, só queria dormir.



