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Grama

16 min.

Suspense

Antes mesmo da prefeitura lotear o grande descampado que havia entre o extremo sul da cidade e o município vizinho, a casa dos Gomez já estava lá, com seu poço artesiano de um lado e um belo gramado verde esmeralda bem cuidada do outro. Era, até então, uma cabana de madeira sobre uma estrutura de pedras irregulares, construída há séculos pelos primeiros Gomez que estabeleceram por lá. Então, a civilização chegou até eles.A antiga trilha se tornou uma estrada de terra, depois uma rua de paralelepípedos e, finalmente, uma via asfaltada com direito até a nome: rua Stella Carr Ribeiro. O horizonte ao redor foi perdendo os tons verdes e ondulantes da vegetação nativa para ser substituído pelas formas duras das construções de alvenaria. Pequenas casas de início. Poucos anos depois, prédios baixos. O grito as aves e estalos dos insetos foi abafado por motores, buzinas, campainhas e vozes de conversas sem fim. A própria residência dos Gomez se alterou: as paredes de madeira foram substituídas por tijolos, dando forma a um simpático sobrado de apenas um andar, mas pé direito duplo. Três compridas janelas azuis ocupavam a fachada branca. O poço, com o advento da água encanada, foi selado e sua área cedida a comunidade para se tornar uma praça com horta coletiva, tentando, assim, preservar um mínimo de flora nativa.

    A porta da entrada ficava virada para lateral, voltada para a grama bem cuidada que estava lá desde o princípio. A relva, entretanto, só podia ser vista da calçada pelo estreito portão de ferro da entrada, que ficava bem centralizado no duro muro de tijolos vermelhos. E pelo vizinho do lado, cujos terrenos se separavam por uma mureta baixa com uma tela simples sobre ela.

    Quem vivia na casa ao lado eram os Fonseca. A época da construção da moradia, era o que tinha de mais moderno em termos de arquitetura. Dois andares, varanda fazendo curva e formas arredondadas, tudo que se esperava de uma moradia erguida na década 1920. Por anos, Gomez e Fonsecas viveram em tranquilidade lado a lado, e viram geração após geração de cada uma das famílias habitar os números 1926 e 1928, respectivamente.

    Mário Fonseca teve um filho, que teve um filho também chamado de Mário. Eles todos viviam na velha casa, que estava precisando de manutenções pontuais, mas ainda bem cuidada. O velho Mário se ressentia de Abelardo Gomez, pois este nunca teve interesse em fazer amizade com o vizinho. O tratava de forma cordial, sim, mas Abelardo Gomez, assim como seu pai, e o pai de seu pai, e o pai dele antes disto e todas as gerações anteriores da família desde que a civilização chegou aquele canto esquecido da América do Sul onde tinham escolhido viver reclusos, não eram gente de fazer muitos amigos. Tirando seus cônjuges, por exemplo, ninguém mais já havia entrado na casa deles. E todos sempre viveram bem com isto. Acham os Gomez gente meio estranha, mas que nunca fez mal a ninguém. E nem davam motivos para que alguém pensasse mal deles. Sempre trabalharam, os filhos foram ao colégio e, depois, faculdade. A casa era bem cuidada e o jardim impecável. Não davam festas, brigavam ou geravam qualquer tipo de problemas para a comunidade. Esta reclusão, entretanto, incomodava a Mário Fonseca, que, sem ter nada de efetivo para se queixar de Abelardo, se apegava a detalhes da rotina daquele que vivia do outro lado do muro.

    — Lá está ele — reclamava Mário — Mais uma vez regando a grama. Ele faz isso todos os dias! Como que pode?

    Com o passar dos anos, o ressentimento pelo gramado verde esmeralda dos Gomez começou a crescer no Fonseca. Uma vez aposentado, Mário passou a se dedicar incansavelmente ao próprio jardim. Mandou trazer relva do longínquo estado de São Paulo.

    — É cara, mas é a melhor do país — dissera o vendedor.

    Era, na realidade, a mais cara. Lâminas finas e em quantidade, bem fixas sobre uma rica terra preta. Milhares de folhinhas tão cheias de clorofila quanto se podia imaginar.

    A dedicação jardinagem tomou conta da mente de Mário. Logo, virou obsessão. Quase uma doença, que pulou uma geração e contagiou o neto. Passou a ser comum ver os dois Mários aparando a vegetação, espalhando adubo e fertilizantes de primeira qualidade, cuidando horário de sol e a previsão do tempo para irrigação. Nunca plantas foram tão bem cuidadas quanto no jardim dos Fonseca. Ainda assim, a grama de Abelardo Gomez era mais verde e viçosa.

    — Tem que ter alguma coisa aí — dizia o Mário mais velho — Não é possível que ele só use água da torneira e tenha aquele resultado.

    — Ele rega até mesmo em dia seguinte a temporal! — completava o neto.

    — Pois é! Não é possível. Como que não afoga a grama? E como ele faz para precisar aparar tão pouco?

    — Vocês estão loucos — comentavam os demais familiares — É como diz o ditado, não é, “a grama do vizinho é sempre mais verde”.

    Obsessão não se deixa guiar por lógica, ditos populares ou mesmo por verdades inconvenientes. Para os Mários havia algo de errado com os Gomez e seu jardim. E, como é de se esperar em casos de fervor desenfreado, uma noite o Mário jovem resolveu pular a cerca.

    Era uma madrugada fria de inverno. Mário usava caríssimos sapatos de jardinagem, desenvolvido para amassar as plantas o mínimo possível, pois as solas tinham longas traves metálicas que faziam com que o pé não tocasse inteiro o chão. Esperava, assim, não deixar marcas de sua invasão. 

    A grama no terreno do número 1926 estava molhada de orvalho e irrigação. A terra encharcada estava macia, de modo que os pregos dos calçados invasores afundaram, mas não por completo. Com cuidado, Mário cruzou a área ajardinada até a solitária torneira no canto da casa, tirou três pequenos frascos plásticos do bolso e encheu de água. Enquanto realizava seu furto, olhou para a triste mangueira verde mal enrolada no chão.

    A borracha estava começando a ficar ressecada do sol. Suas paredes eram finas e molengas. Aquela era, sem dúvidas, a mangueira mais barata da ferragem. Mário apertou os dentes de raiva. Como podia um material tão vagabundo dar um resultado tão melhor do que o sistema importado e automatizado que havia instalado ainda no mês anterior?

    Silencioso, fez o caminho de volta. Ao pular a cerca de volta para sua residência, se desequilibrou quando as travas de seu sapato entraram fundo na terra úmida de orvalho, como se fossem facas quentes na manteiga. Com o tornozelo levemente torcido, entrou em casa mancando. O joelho também estava lanhado, mas dormiu feliz sabendo que no dia seguinte descobriria o que havia na água do vizinho.

    Ambos os Mários tiveram que esperar mais do que apenas o dia seguinte para a solução do seu mistério. Enviaram cada uma das amostras para um laboratório diferente. Seriam realizadas toda sorte de teste de qualidade e componentes presentes na água que saia daquela torneira.

    Quando veio o primeiro resultado indicando que era apenas água potável, com todos os químico esperados de qualquer torneira comum da cidade, eles não esmoreceram. Apenas bufaram e disseram:

    — Ainda tem outros dois para recebermos.

    — Sim! E o que eles sabem? Devem ter feito tudo mal feito, ou não teriam conseguido entregar os resultados antes dos demais.

    O segundo laudo foi igual ao primeiro. Isto, ao invés de fazê-los mais tranquilos, inflamou-lhes os espíritos. Seria no terceiro, certamente. Por isto que estava demorando mais. A prova de que aquela água não vinha do encanamento municipal, mas de uma reserva secreta poderia chegar a qualquer momento, e ambos os Mários não se aguentavam de ansiedade.

    — Talvez até venha da rua — colocou o neto durante o jantar — Mas ele pode estar colocando um aditivo na caixa d’água direto.

    — Que caixa d’água? — exclamou seu pai, que não aguentava mais ver seu próprio pai e seu filho sendo consumidos vivos pelas paranóias por conta de grama de Abelardo Gomez — Onde que tem caixa naquela casa? Dentro daquele telhado baixo? Talvez ele tenha no meio sala. É deve ser isto, ele tem um reservatório de cinco mil litros no meio da sala de uma casa centenária. Aí o velho solteirão que fica fazendo poções mágicas e colocando dentro só para grama deles ficar mais verde que a de vocês, já que só quem mora aqui em casa consegue ver o jardim dele! Ora, façam-me o favor vocês dois...

    O discurso irritado foi interrompido por um celular. Uma notificação de e-mail. O laudo final. Discretamente, Mário neto abriu e leu. Precisou apenas um aceno da cabeça para que seu avô entendesse o resultado: era água normal. A mesma a que eles tinham aceso e estava, de fato, tomando naquele mesmo instante. Ninguém disse mais nada, mas havia um ar de riso no rosto dos que não acreditavam na conspiração da grama.

    Nenhuma negativa, entretanto, iria esmorecer os espírito inflamos pela inveja, curiosidade e delírios. Mas planos precisavam de tempo para serem elaborados e postos em prática. Esperariam alguns meses, para que os dias frios passassem e primavera chegasse, favorecendo o crescimento de todas as plantes.

    Foi durante o mês de outubro que, sob o manto da madrugada, Mário voltou a invadir o terreno vizinho. Com uma pequena pá e sendo orientado pelo avô, retirou um punhado de grama. Com cuidado, penteou as folhas que ficaram para tapar a falha.

    Antes de pular de volta, Mário passou com toda delicadeza o furto para seu avô. Iriam plantar do seu lado do muro na esperança de que se espalhasse. Haviam até deixado já um círculo de terra livre ao redor de onde fariam o enxerto.

    Como toda planta bem cuidada, aquela pequena amostra vingou. A época do ano propícia para seu crescimento ajudou. Ela dominou o espaço que tinham lhe reservado e estava se aproximando da já plantada. Mas havia algo de diferente. A grama roubada estava crescendo muito mais rápido do que a sua irmã do outro lado do muro. E estava ficando mais escura também. Porém, nenhum dos Mários pode dedicar muito tempo a compreender o que se passava, pois Mário sênior adoeceu pouco tempo depois.

    Aos 87 anos, morreu Mário Fonseca durante uma noite chuvosa. Seu velório tomou a manhã inteira da família. O único Mário restante, ao chegar em casa pouco depois do meio dia, atirou-se em um sono enlutado e pouco relaxante. Acordou já era noite. O temporal havia passado, mas a nuvens no céu indicavam que havia mais por vir. Pela sua janela, pode ver Abelardo terminando de regar o gramado e chaveando a porta para sair.

    Dominado por uma forma furiosa de dor, Mário correu para fora, pegou uma pá e começou a destruir a área com vegetação roubada. Em poucos segundos, destruiu o que levou semanas para se desenvolver graças aos cuidados do avô. Aquilo não trouxe alívio, pois a grama de Gomez seguia verdinha e pura, com gotículas de água refletindo a luz quente das arandelas decorativas de Abelardo. Era como se elas rissem dele e do seu fracasso familiar.

    Inconsequente, Mário pulou a cerca mais uma vez. Ele não se preocupava em cravar a pá no solo molhado, apenas batia no chão e arrastava suas laterais. Dezenas de folhas finas voavam. Pedrinhas, pequenos torrões de terra e gotas enlameadas eram jogadas no ar. Sua fúria ia intensificando a força das pancadas, até que o cabo da pá rachou. Não trincou por estar fraco ou velho; abriu uma fenda em que dava para se ver o outro lado, pois a concha metálica havia se chocado com algo duro que ecoou de forma abafada a batida.

    Mário parou. Será que teria acertado um cano? Não deveria ser possível, pois não havia penetrado nem quinze centímetros no solo. Havia algo escondido sobre a terra, podia sentir. O segredo da grama perfeita, certamente. 

    Ele começou a cavar afoito. A ferramenta terminou de quebrar devido ao uso forçado e descuidado, e uma de suas pontas rasgou-lhe o braço. Mário não se importou; pegou o que sobrou da pá e segui cavando. Pouco a pouco, foi desenterrando algo que não esperava.

    Num primeiro momento, pareceu ser uma tábua de madeira muito antiga, mas tratada para resistir a umidade do solo. Logo apareceu a seguinte ao seu lado. E a próxima do outro lado. E mais outra e mais outra. E barras de ferro com grossos pregos enferrujados mantendo-as unidas. Talvez fosse uma caixa. Uma bem grande. Grande o suficiente para ocupar praticamente todo o jardim.

    Vinha um som de dentro dela. Não apenas ressoava as batidas da pá, mas algo mais. Talvez água. Seria o aditivo da grama? Algo tão secreto (talvez até proibido) que precisava ficar assim escondido?

    A determinado ponto, bem no centro do que antes fora um belo gramado, Mário achou um alçapão. Grande o suficiente para passar um automóvel. Ele não achava que conseguiria abrir sozinho e ainda assim agarrou a argola de ferro com as duas mãos. Rangendo, a porta abriu com absurda facilidade. Mário pegou de pedaço de pá e colocou como calço para segurar a tampa aberta.

    Não se via nada do que estava guardado ali. Ele ouvia som de liquido se movendo e podia sentir um cheiro que lembrava peixe. Havia algo mais, um ronco talvez. Não, estava mais para um ronronado.

    Mário tirou o celular do bolso e acendeu a lanterna. Era água mesmo que enchia aquele enorme espaço. Mesmo sem vento, ela se movia e ondulava. O ronronado pareceu se intensificar com a luz. E então Mário viu. De início achou que fosse um reflexo. Depois, uma ilusão de ótica. Mas era real. Ele encrava para a água e ela o encarava de volta.

    Um único olho caprino, com íris de um verde-grama intenso, maior do que uma bola de futebol o observava. Havia uma pele escamosa ao redor, mas Mário não conseguia sequer dizer que cor era. Um silêncio sepulcral encheu a noite. Até mesmo a movimentação da água havia estagnado. Por uma eternidade ele se perdeu em horror naquele mirada. E então, um pingo.

    Uma única gota de sangue escorreu do braço de Mário e caiu na água. O olho sumiu e as águas se agitaram, tirando Mário do transe. O que pareceu ser um tentáculo espinhoso (ou seria coberto de tentáculos menores?) roçou a superfície e um grito de horror dominou o jardim.

    Mário foi puxado para trás. Seu celular caiu pelo alçapão, com a lanternar acesa dando vislumbres da criatura que lá vivia. O acesso foi fechado com agressividade. Abelardo Gomez estava ofegante, segundo o toco de cabo que fora usado de suporte.

    — O que você fez? — perguntou o velho. Não estava irritado, mas assustado.

 

Os cubos de gelo estalavam conforme iam sendo forçados para fora da forma e tilintavam ao ser jogados no copo de vidro simples. O uísque barato rachou o gelo e logo foi diluído. Mário, trêmulo, bebeu dois copos sem nem perceber antes de conseguir voltar a si totalmente.

    Estava sentado na cozinha da casa de Gomez. Nada ali era novo, mas era tudo familiar para Mário. Era como a própria casa, onde móveis e eletrodomésticos eram trocados apenas quando realmente não funcionavam mais, não apenas por moda ou praticidade. Uma cortininha de renda tapava apenas a metade inferior das janelas, cujos vidros voltavam a ser lavados pela chuva.

    — O que é aquilo? — perguntou Mário depois de tomar a terceira dose, enquanto o vizinho limpava o corte em seu braço e fazia um curativo.

    — É uma criatura sem nome — respondeu — Não há, nem nunca houve, em língua alguma deste mundo palavra capaz de expressar o que é o terror que vive naquela prisão.

    — Mas o que...

    — É um monstro. Um mal que é incapaz de dormir ou morrer. Um demônio do mundo antigo.

    — O quê? Mundo antigo...?

    Abelardo coçou os olhos, suspirou e tomou uma dose do próprio uísque antes de começar a falar.

    — Não sei ao certo onde a história da criatura começa. Ela sempre existiu, pelo que me passaram. O mais antigo que se consegue chegar de sua história é no Cartago.

    — Cartago?

    — Isso, na cidade Cartago. Uma história que remonta ao século VIII antes de Cristo. A criatura já estava aprisionada quando o Guardião cartaginês assumiu. Não sei de onde ela veio ou quem a prendeu. Nem quando. Mas, como disse, o Cartago é o mais atrás que pudemos chegar.

    “Os anos vieram e passaram. Junto, as guerras. Quando Roma tomou o Cartago, o Guardião teve que sair. Ele conseguiu fazer uma prisão móvel para criatura e partiu por terra, evitando toda e qualquer pessoa. Foi difícil, imagine, levar sobre rodas uma cela do tamanho de uma casa!  Ele quase perdeu o controle sobre ela, mas finalmente chegou a Bizâncio, onde gerações atrás de gerações de Guardiões seguiram com a missão. E, então, Bizâncio caiu.

    “Foi ainda durante o arque Otomano que eles se mudaram com o terror absoluto. Por mar, o Guardião chegou com a criatura a Málaga. Mas não havia uma boa estrutura para ficar por lá. Era arriscado e, quem tinha conhecimento do que estava preso, começava a ter delírios de ser capaz de controlá-la para usar contra os “infiéis”.

    “O Guardião fugiu para o Novo Mundo. Embrenhando-se em terras nunca mapeadas, ele achou um local plano e ficou. A prisão da criatura foi enterrada e assim está por mais de quinhentos anos”.

    Mário seguiu em silêncio. Cartago? Bizâncio? Guardião? Criatura? Nada daquilo se conectava, não saberia dizer se pelo fantástico do que ouvia ou se por ter sua mente ainda dominada pelo olho verde que o havia encarado.

    — Um homem só trouxe aquela coisa e enterrou aqui sozinho? — foi tudo que Mário conseguiu perguntar. Era o único ponto de realismo em que conseguia se fixar.

    — Não, não — Abelardo quase estava rindo — Você ouve sobre a história de existência do pior ser que já existiu e pergunta sobre a logística do trabalho? Ha ha! Não, não foi só. O Guardião é jeito de dizer. Já houve tempos em que foram uma vintena de pessoas ao mesmo tempo. Noutros, como agora, que é só um. Eu. Mas sempre tem alguém guardando a criatura.

    — Mas se ela é tão terrível, como vocês a mantém presa? Aquela madeira certamente pode ser quebrada por algo que tem um olho tão... colossal.

    — Água. Enquanto ela estiver afogada, não tem forças para lutar ou fugir. Por isso que eu jogo água nela todo santo dia desde que me foi passada esta missão.

    Mário olhou incrédulo para Abelardo. Por décadas ele e seu avô passaram tentando entender o que se passava na cabeça do velho Gomez para regar o jardim até mesmo depois de temporal ou mesmo em dias de chuva fraca. Termina que não estava cuidando do jardim, mas salvando a humanidade de um demônio real.

    — Por isso a sua grama é tão bonita?

    — O quê?

    — A grama... Ela é tão perfeita. É por conta da criatura?

    Abelardo riu desta vez. E riu alto.

    — E eu que sei de grama? De que me importa a grama? Ela está ali porque nasceu; acho que ninguém cultivou ou planejou colocar a grama ali. O que importa é a água. A água que é jogada diariamente para manter o nível alto na prisão da criatura. E a terra a redor ajuda a manter a umidade interna. 

    Mário ficou consternado por um tempo, enquanto Abelardo ainda dava risadinhas e bebia. 

    — Grama... — murmurava o vizinho, rindo-se.

    O segredo, então, era uma fera horrível. Mas, ao olhos de Mário, o verdadeiro monstro era o Gomez, que sequer parecia ter em conta que ele tinha o gramado mais perfeito e belo de todos. E ainda ria disto. Sem querer ser grosseiro e sentindo a irritação que só quem está de luto é capaz de conhecer crescer em si, Mário terminou a bebida e se levantou.

    — Bom, eu preciso ir — disse ele.

    — Não. Ainda não. Vai me ajudar a espalhar a terra em cima daquela tampa toda.

    Ele assentiu. Era o justo, não podia negar.

    Trabalharam em silêncio, ouvindo a chuva bater nas capas de proteção transparentes que usavam. Mário não sabia se era da sua cabeça ou não, mas podia jurar que ouvia a criatura fazendo seus sons lá dentro.

    — Você já a viu? — perguntou Mário quando terminaram o serviço.

    — De que outra forma você acha que alguém acreditaria nesta história e aceitaria seu papel de Guardião? — ele pegou a pá que havia emprestado a Mário — Meu pai me mostrou a criatura quando eu tinha vinte anos. E meu avô mostrou para meu pai. E assim sucessivamente desde, pelo menos, a Espanha. De pai para filho. Como nossa família entrou nesta missão eu não sei. Mas imagino que seja como você.

    — Como eu?

    — Claro! Agora você sabe da criatura. E eu não tenho herdeiros. Quando eu me for, você deverá assumir como Guardião.

    — Eu? Não, não. Me deixe fora dessa! Quero esquecer que...

    — Rapaz, você acha que é capaz? Acha que depois de ver o que você viu vai ter uma só noite em que não sonhe com a criatura?

    Mário não respondeu. Não tinha o que falar.

    — Eu já passei por esta negação. Mas não tem como escapar da visão do mostro. Vá para casa. Descanse. Sei da sua perda e sinto muito por ela. Quando estiver mais centrado, peço, volte aqui para que eu possa formalmente fazer um testamento colocando-o como meu único herdeiro. Assim, será o dono deste terreno maldito quando eu me for. E da grama perfeita, seja lá o que isso signifique para você.

    Abelardo deu as costas e entrou em casa, deixando Mário sozinho na chuva, com o ronronado nos ouvidos e a imagem do olho fixa em sua mente. 

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