Rafael Marantes
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Uma pistola chamada Tchekhov ao pôr-do-sol
10 min.
Suspense
Esperidião Fonseca era, sem sobra de dúvidas, um magnata do ramo da logística internacional. Começou herdando um generoso negócio de locação de contêineres de carga e, com o passar dos anos, passou a controlar todos a cadeia produtiva envolvida, indo da mineração do ferro para fabricação das chapas que formavam as caixas metálicas até os braços mecânicos que as colocavam e retiravam dos navios. Ainda assim, ele não era um homem amplamente conhecido da população, como foram Eike Batista ou Jorge Gerdau. E isso lhe satisfazia de imenso.
Quando resolveu que comemoraria seu aniversário de 80 anos no alto do Pão de Açúcar, Esperidião encontrou alguns reveses que, certamente, não teria se fosse um cidadão de renome nacional. Mas nada que alguns PIX de milhares de reais não dessem conta de resolver. Desta forma, no quente fim de tarde de 27 de outubro, centenas de turistas do mundo inteiro frustaram-se ao descobrirem que não poderiam subir a montanha mais conhecida da cidade, tendo que contentar-se em ficarem apenas no Morro da Urca.
Todo mundo que era alguém estava presente. Nada de sub-celebridades, ex-participantes de reality shows populares ou artistas da moda. Havia ali dois vencedores do Nobel, quatro Pulitzer, pelo menos oito Jabuti, uns três Camões, uma dezena de títulos nobiliárquicos ancestrais e apenas um político. As riquezas de todos era maior do que o PIB de somado de uma vintena de nações subdesenvolvidas.
Ele flanava pela festa, sorrindo e acenando. Até que a viu, parada junto ao guarda-corpo metálico, um anjo em forma de mulher. Ao menos era aos olhos dele. Alta e esguia, estava com o rosto virado para o Iate Clube do Rio de Janeiro, de modo que o aniversariante via apenas seu delicado perfil. As luzes das centenas de embarcações ancoradas, ainda que há metros e metros abaixo deles, se refletiam nas irís de esmeralda da dama. Os cabelos dela iam até o meio das costas, brilhantes e bem arrumados, em ondas tão douradas quanto o sol carioca, escondendo a pele que estava a nua devido ao amplo decote traseiro de seu vestido, todo branco com uma costura em pedrarias pretas que lembrava as ondas do calçadão de Copacabana.
— Quem é ela? — perguntou Esperidião virando-se para Alex, seu fiel secretário que estava sempre a sua sombra — A bela moça no guarda-corpo, com a taça de champagne?
— Não sei, senhor — respondeu ele, corando — Uma penetra talvez.
— Descubra para mim, sim? Ah, e se for intrusa, não tem problema.
Esperidião voltou-se novamente para admirar a jovem, mas ela havia sumido. Ele teve a ilusão de que restara apenas seu rastro perfumado no ar.
Em quinze minutos Alex já estava de volta.
— Seu nome é Fabiana Pardo.
— E...?
— E mais nada, senhor — Alex estava mais vermelho do que um tomate — Não consegui mais informações de ninguém. Não quis chamar muita a atenção para nossa intrusa...
— Bom, com um nome pelo menos já posso dizer olá — ele arrumou o colarinho da camisa de linho que usava — Como estou?
— Garboso, como se tivesse apenas 70 anos.
Esperidião riu e voltou a circular, mas não mais em passos calmos e contemplativos. Ia levemente apressado, virando a cabeça para todos os lados e esquadrinhando cada canto em busca de Fabiana. Teve que evadir-se de mais cumprimentos e conversas banais do que gostaria. E tudo valeu a pena quando a viu, mais uma vez sozinha, junto a buffet de doces e a mesma taça de champagne ainda intocada.
— Você não é muito de beber, não é? — perguntou ele se aproximando, como se fosse só mais um conviva indo servir-se de brigadeiros e copinhos de chocolate recheados com mousse de limão.
— Como? — a voz dela era bastante suave, mas firme.
— Seu champagne já não tem bolhas — respondeu ele apontando para flute — Então já deve estar sendo carregado de um lado a outro há um tempo.
— Ah, sim — ela abriu os lábios bem desenhados com um batom vermelho intenso e nada vulgar em um sorriso estonteante — Mas os garçons aqui não podem me ver com as mãos vazias que já surgem com uma bandeja repleta de taças. Acho mais fácil circular com uma por aí e tomar uma Coca escondida no bar.
— Sagaz. E você está desacompanhada?
— Sim. Eu ia vir com uma amiga minha, como sua “mais um”. Mas ela ficou doente e só me avisou quando eu já estava na base do bondinho. Vou dizer, até tentei fugir, mas tinham uns turistas também para subir para ver o pôr-do-sol e acabei sendo levada. Aí como já estava no alto da Urca pensei “Bem, não posso perder a vista do bondinho da Urca para o Pão de Açúcar” E voi là, estou aqui.
— Sorte a nossa.
— Muito obrigada, mas já devo sair em seguida. Eu nem sei quem é o aniversariante. Se ele me ver, capaz de me expulsar por ter furado a festa dele.
— Não, jamais ele faria isso com uma moça tão simpática.
— Vai saber. O cara fecha um dos principais pontos turísticos da cidade, do mundo!, para fazer o aniversário... Certamente ele não gostaria de encontrar desconhecidas que sequer trouxeram presente.
— Sua presença já vale como presente.
— Ah... Meu deus... Esta é uma daquelas situações de filmes de comédia em que estou falando com o aniversariante sem nem saber?
— Esperidião Fonseca, o aniversariante em pessoa.
— Me desculpe! Por deus... Feliz aniversário para o senhor!
— Não precisa me chamar de senhor, está tudo bem, Fabiana.
— Eu... Nossa... Espera, eu não disse o meu nome.
— E acha mesmo que alguém iria furar a minha festa sem eu saber quem era? — ambos riram — Venha, vamos nos sentar para conversarmos melhor. Aceita um cigarro?
Esperidião e Fabiana conversaram e gargalharam a noite toda. Ela finalmente largou sua bebida quente e ele esqueceu-se dos demais convidados. Ao final da festa, quando sobraram apenas os dois para descerem pelo bondinho, Fabiana aceitou encontrar-se com o octagenário novamente.
E eles se viram de novo e de novo e de novo. Ele estava apaixonado por ela como sentia que nunca havia ficado por ninguém, nem mesmo pelas duas esposas que já tivera. E ela sentia um amor genuíno por Esperidião, que até mesmo se provara um amante fenomenal na cama.
Esperidião e Fabiana tiveram um casamento dos sonhos em Fernando de Noronha. Ela não tinha familiares, então escolherem fazer uma cerimônia pequena, discreta e elegante. Durante o final da lua da mel no Tahiti, ele deu-lhe a notícia:
— Fabiana, meu bem, eu vou me aposentar.
— Sério? — ela terminava de arrumaras malas para o check out na manhã seguinte — Você gosta tanto do seu trabalho....
— Eu sei, mas estou cansado daquilo. Sem falar que agora tenho você para me ajudar a passar os dias — ele a abraçou.
— Se for te fazer feliz, sabe que apoio — ela lhe deu um beijo — Tem espaço nas tuas malas? As minhas estão lotadas e não cabe a bolsa de perfumes.
— Claro, a menorzinha ainda tem onde — ele disse indo ao banheiro.
Fabiana colocou a mala em cima da cama e abriu. Começou a arrumar o espaço para colocar seus perfumes em segurança quando sentiu algo frio. Ela puxou uma pequena pistola de tambor carregada com seis balas.
— O que é isto? — perguntou a moça, que jamais havia visto a arma antes.
— O quê? Ah... — suspirou ele — Esqueci que estava aí. Me dê isto. É uma Colt Cobra calibre 38 feita sob medida para minha mão. O cabo de madeira foi entalhado. Vê?
— Muito bonito, mas por quê a tem?
— Nunca se sabe quando será necessário. E agora que a viu... — ele suspirou — Eu sei que será.
— O que quer dizer?
— Esta pistola que chamo de Tchekhov — ele guardou a arma novamente, fechou a mala e se sentou na cama — Conhece o conceito? Da arma de Tchekhov? — ela acenou positivamente com a cabeça — Então, este revólver tem esta maldição. Sem que alguém a vê, em algum momento, eu me vejo obrigado a dispará-la na presença de quem a viu.
— Você vai atirar em mim? — Fabiana estava começando a ficar preocupada.
— Não, meu amor! Jamais! Mas certamente algo vai acontecer em sua presença que terei que atirar. Tales viu esta arma quando tinha 5 anos. E só fui usar na frente dele quando já tinha seus 20. Estávamos numa pesca no Amazonas e um jacaré estava tentando virar nosso barco. Então, um dia, você terá que vê-la em ação, infelizmente.
O feliz casal Fonseca vivia em uma constante lua de mel. Eram praticamente nômades, indo de um destino paradisíaco a outro. Ficavam alguns dias em alguns e meses noutros. Não tinham segredos um para o outro. Ainda assim, ele nada sabia sobre o passado dela. Sempre que tentava introduzir o assunto, ela mudava a direção da conversa. Foi por acaso que descobriu que ela era natural de Gramado, no Rio Grande do Sul. E tudo graças a um telefonema que Esperidião recebeu durante o inverno Atenas.
— Mais uma vez as pessoas não entendem que estou aposentado — disse o empresário para esposa tão logo desligou — Querem me vender um hotel cinco estrelas no interior do Brasil.
— Bom, certamente você está muito mais entendido do hotéis desde nosso casamento. Saberia o como administrar.
— Essa é boa — ele riu — Não, meu negócio sempre foram os contêineres. Imagina a esta altura da vida incluir hotel em Gramado no portfólio!
— Onde? — ela perguntou incrédula.
— Em Gramado. Sabe, a cidade do chocolate no sul.
— Sei...
— O que foi, meu amor, está pálida.
— Nada... Só que... Realmente, não deve ser uma boa este hotel ou não estariam vendendo.
— Não, dizem que está excelente estruturalmente e financeiramente. Os donos são novos. Herdaram. Não querem - ou não sabem - tocar o negócio. Mas por que a mudança? De início parecia achar que era uma boa ideia, agora não mais...
— Eu sou de Gramado — respondeu hesitante — E não gostaria de jamais voltar para lá.
— Oh! — exclamou Esperidião — Isto inverte tudo! Talvez seja um sinal para eu ir para o ramo hoteleiro.
— Não, Esperidião, por favor.
— Ora, vamos, o que tem de mal a cidade? Parentes? Ex-namorados?
Fabiana não respondeu. Ela se resignou a suspirar e tentar abafar sua ansiedade enquanto o marido ligava de volta para o advogado para dar andamento no negócio.
— Apenas me prometa que nunca iremos lá — murmurou ela. Ele acenou e sorriu, sem ouvir.
Fabiana implorou tanto para não ir que, quando cedeu, Esperidião concordou com a única condição que ela impusera: ficaria em um quarto separado. O retorno a cidade natal a aterrorizava, mas ele achava que era apenas medo de reencontrar com o passado. Afinal, se ela não queria falar da vida antes de conhecê-lo, talvez tivesse feito algo que de se envergonhasse. Ou incriminasse. Mas com ele, não teria o que temer, dizia.
O verão estava quente na serra. A cidade apinhada de turistas de todos do cantos do país e mesmo internacionais. Hotéis e restaurantes estavam com lotação máxima. O novo empreendimento de Esperidião ficava no fim da av. Borges de Medeiros, de modo a ser ainda bem localizado, mas a certa distância da agitação do centro.
Esperidião nunca fora a Gramado e estava conhecendo tudo, tendo uma Fabiana até que bem tranquila como guia. Tudo ia bem, e então chegou o fim da tarde.
— Não estou me sentindo muito legal... — disse Fabiana no meio de uma das muitas lojas temáticas de chocolates — Vou voltar ao hotel.
— O que você tem, meu amor? Quer que vá junto?
— É só uma enxaqueca. Continua com o Alex conhecendo a cidade.
O magnata voltou ao parador a noite. Pretendia trocar-se, pegar a esposa e jantar no restaurante do hotel com alguns empresários locais que queiram conhecê-lo.
— Fabiana? — ele bateu na porta do quarto conjugado — Está melhor? — ele tentou abrir, mas ela havia trancado.
— Ainda não muito.
— Não vem jantar? Sabe como é chato estes eventos sem você.
— Não tenho condições, terei que ficar aqui.
— Está bem. Se precisar de qualquer coisa, me chama.
No dia seguinte, ela estava fresca e descansada. Ele, rabugento. Tomaram o café da manhã com os demais hóspedes e passaram o dia juntos. Porém, quando o sol começou a insinuar que iria se pôr, mais uma vez, Fabiana balbuciou uma desculpa e fugiu para seu quarto, trancando-se a noite toda.
O terceiro dia foi de briga. Esperidião queria saber o que se passava, já que, aparentemente, ela não tinha nenhum problema com a saúde (ou com a cidade) durante o dia. Mas ela se negou terminantemente a falar. Nunca haviam tido um desentendimento como aquele. Passaram a manhã e a tarde separados. E, quando a noite começou a chegar, ela se trancou novamente.
— Hoje temos o jantar com o prefeito — gritou ele para a porta cerrada — Você tem que ir.
— Eu não posso — respondeu Fabiana — Não estou bem...
— Tome analgésicos então.
— Não, é muita dor para remédio dar conta.
— Então saia daí que vou levá-la ao hospital.
— Não há necessidade, só preciso descansar.
— Vamos, Fabiana, deixe de cena. Ou você consegue tomar um comprimido e descer pelo menos para o primeiro prato ou eu vou cancelar tudo e te levar ao médico. Não pode ficar assim.
— Não! Não! Me deixe e vá. Eu vou ficar bem.
Esperidião não respondeu. Já estava preparado para um insistência de Fabiana em se evadir. Ele estava preocupado com a esposa e achava que uma conversa cara a cara era melhor para aquela situação. Por isto, havia solicitado a gerencia a chave esqueleto dos conjugados. Com cuidado, abriu a tranca e deslizou as folhas duplas uma para cada lado. Foi quando viu o que não tinha como explicar ou compreender.
Fabiana não estava lá. Em seu lugar uma intensa luz de ouro e prata. Quando os olhos de Esperidião se acostumaram com o brilho que quase cegava, viu o ser que flutuava no meio do aposento. Tinha seis pares de gigantescas asas de penas brancas. Sua cabeça era como de um leão, com um bica de águia e chifre de touro. Entre os cornos, pairava uma coroa feita de chamas.
— O que é você? — perguntou Esperidião, chorando.
— Não tenha medo — respondeu Fabiana com a voz de mil pessoas saindo de sua boca de ave.
— Se afaste! — ele caminhou para trás enquanto ela vinha na direção dele e tropeçou no tapete, caindo de costas.
— Eu sou...
— Eu disse para se afastar!
Esperidião tirou a Colt do cós traseiro e descarregou o tambor na criatura. Ela soltou um gemido de dor e agonia, então caiu morta, com seu sangue de bronze escorrendo por todo o soalho de madeira.
Antes que o magnata pudesse assimilar o que acontecer, Alex estava no quarto. E logo um delegado. Antes de meia noite, agentes da inteligência do governo federal já dominavam todo andar do prédio e sumiam com o que Fabiana havia se tornado. O caso foi totalmente abafado e Esperidião terminou vendendo o hotel menos de dois meses depois de fechar o negócio.



